Filmes retratam problemas urgentes da Amazônia pelo olhar da população afetada

Índios da tribo Asháninka, que vivem no município de Marechal Taumaturgo, no Acre (Foto: Antônio Milena/ABr - Agência Brasil)
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No território Munduruku, próximo à cidade de Jacareacanga (PA), há uma demanda fora do comum por cadeiras de rodas infantis. Uma investigação médica concluiu que isso se dá pelas altas taxas de mercúrio no sangue dos moradores da região, que levam a problemas neurológicos irreversíveis em adultos, idosos e também nas crianças.

O mercúrio lançado ilegalmente no rio Tapajós para o garimpo de ouro vem contaminando os rios, os peixes e também o povo Munduruku. O conjunto de sintomas neurológicos apresentados pelos indígenas tem o nome de doença de Minamata, uma cidade de pescadores no Japão que, em 1950, teve sua baía contaminada por uma fábrica de plástico que lançava mercúrio nas águas. Os japoneses levaram 35 anos até conseguir fechar a fábrica, receber indenizações e pensões.

As duas histórias são contadas no filme Amazônia, a nova Minamata?, que deve estrear agora em outubro, é dirigido por Jorge Bodanzky e conta com a participação do médico Erik Jennings e da liderança indígena e ativista ambiental Alessandra Munduruku. Em um determinado momento do documentário, Alessandra, em manifestação no Congresso Nacional, diz: “As pessoas têm que saber o que está acontecendo e é por isso que a gente não para de lutar. Vocês estão matando os nossos filhos”.

“Todos nós já sabemos da questão da contaminação do mercúrio na bacia amazônica, mas eu não fazia a menor ideia da dimensão e do desastre irreversível que é. O mercúrio ataca o sistema neurológico, também passa pela placenta e os bebês já nascem com alto índice de contaminação. O mercúrio a gente não vê, não cheira. Ele também demora a aparecer. Às vezes a pessoa mora há 30 anos no local, está contaminada, mas isso não é visível”, disse Bodanzky, durante o primeiro seminário da série “Amazônia em imagem e movimento: as histórias do extrativismo da Amazônia registradas pelas lentes do documentário nacional”, promovido pela FAPESP em 15 de setembro.

A série, dividida em três sessões, visa debater como o extrativismo intensivo da Amazônia e as grandes obras de infraestrutura que o acompanham vêm sendo registrados e difundidos nacional e internacionalmente por um conjunto cada vez mais robusto de filmes.

A proposta de debate partiu de pesquisadores que integram o projeto “Depois das Hidrelétricas: Processos sociais e ambientais que ocorrem depois da construção de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio na Amazônia Brasileira”, apoiado pela FAPESP no âmbito do programa São Paulo Excellence Chair (SPEC).

“Estamos produzindo conhecimento sobre os impactos sociais e ambientais após o processo de construção das hidrelétricas, contudo essas obras fazem parte de um processo histórico, muito mais amplo. A produção de documentários tem tido um papel central nessa documentação. E permite vivenciar atividades extrativistas históricas desde a época da borracha até hoje no garimpo, levando os processos ocorridos na Amazônia ao conhecimento de públicos mais amplos e inclusive contribuindo na agenda de pesquisa acadêmica sobre a região”, disse Emilio Moran, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do projeto SPEC-FAPESP.

Para os especialistas, a colaboração entre documentaristas e a população atingida pelas grandes obras na Amazônia é fundamental. Para eles, também é necessário que se instale estrutura e incentive a formação de recursos humanos em cinema e comunicação na região para que temas da vida social de indígenas, ribeirinhos e da região amazônica em geral possam ser vistos de outro modo, a partir do olhar de quem vivencia os problemas.

“A Amazônia interessa para o mundo inteiro e, de algum modo, preenche um espaço no imaginário mundial. Isso faz com que ela sofra historicamente de um certo extrativismo de imagens. Há uma Amazônia imaginada presente no cinema de ficção. Mas existe uma dimensão política no documentário e é essencial que esse olhar parta também das pessoas que vivem na região”, disse Gustavo Soranz, professor visitante da Universidade Federal do Pará (UFPA) e autor do livro Território imaginado – Imagens da Amazônia no cinema (Edições Muiraquitã, 2012).

Descolonizar o olhar

Historicamente, o desenvolvimento da Amazônia foi pensado pelo ponto de vista do crescimento econômico, não da região, mas do país. Esse modelo hegemônico é retratado em vários documentários. No entanto, de acordo com especialistas, ao analisar os documentários ao longo dos anos, é possível perceber uma mudança na maneira de retratar indígenas, ribeirinhos e caboclos.

De acordo com Edna Castro, professora emérita da UFPA e codiretora do filme Marias da Castanha, inicialmente as imagens sobre a Amazônia passavam a percepção do homem subordinado. “A subordinação é vista como algo fatal, que não se move, algo consagrado como parte da vida social na região. Hoje, no entanto, temos uma produção de imagem que mostra o contrário: é o levante, a insurgência que atravessa o passado colonial”, disse.

Castro ressalta que as dimensões do pensamento do progresso e prosperidade do Eldorado fortalecem o processo atual de produção de commodities. “É a força da imagem hegemônica da prosperidade, do agro, do minério, da madeira”, completou.

“Muitos documentários mostram essa invasão da privacidade da Amazônia e muitos deles retomam o mito do desenvolvimento e do progresso. Inicialmente eram as ações civilizadoras que invadiram a região e que viam a Amazônia como ignorante, bestializada, seja das políticas públicas, sobretudo dos governos militares, seja dentro do âmbito das pesquisas, empresas e de certas agências no caso da Sudam [Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia]. Mas o audiovisual pode ajudar a descolonizar o olhar”, afirmou.

 Evolução do olhar em três filmes

 Soranz concorda com Castro. Durante o webinário, ele comparou três filmes, realizados em períodos históricos diferentes, para mostrar como se deu a evolução no olhar em documentários sobre o extrativismo na Amazônia e como a presença de sujeitos sociais que vivem na região foram ganhando cada vez mais protagonismo.

Primeiro, ele analisou No Paiz das Amazonas, documentário mudo brasileiro de 1922, dirigido por Silvino Santos. O filme rodado já no declínio do ciclo da borracha tem o objetivo de mostrar modelos econômicos para a região, sendo uma espécie de propaganda da exploração de produtos como o fumo, castanha, peixes e outros.

“Marco inaugural do documentário sobre a Amazônia, o projeto foi financiado pelo comerciante JG Araújo, que explorava os insumos da floresta. É, portanto, um filme de viagem, que vai subindo o rio Negro, demonstrando todo o potencial econômico dos insumos naturais. E como que o sujeito social aparece? Com remissão do olhar para a câmera, uma imagem que denota certa relação afetuosa ou amistosa entre o sujeito que filma e o que é filmado. Mas a história não é sobre eles, ainda não tem as histórias de vida. Trata-se de um inventário das possibilidades econômicas a partir dos insumos naturais que podem ser extraídos da floresta”, afirmou.

Já em Marias da Castanha, de Edna Castro e Simone Raskin (1987), o foco é o trabalho de beneficiamento da castanha no Pará. “O interessante nesse filme é que começamos a ouvir as histórias de vida dessas mulheres. Começa a adentrar no universo pessoal, que são apresentadas como pessoas que têm sonhos, desejo, luta”, disse.

O filme narra ainda as dificuldades do deslocamento do interior para a capital, como é ser líder de família e cuidar sozinhas dos filhos. “Os relatos apresentam toda essa dimensão social que está colocada no trabalho pelo regime de beneficiamento da castanha, no extrativismo vegetal. O foco não é o extrativismo, mas quem são esses sujeitos que trabalham no extrativismo. Isso está em sintonia com o documentário brasileiro nos anos 1980 de dar a voz e permitir conhecer novos sujeitos sociais”, explicou.

O terceiro documentário analisado por Soranz é Antônio e Piti, de Vincent Carelli e do diretor indígena Ashaninka Wewito Piyãko (2019). O filme conta a história de um casal: Antônio é um Ashaninka, da aldeia Apiwtxa, no Acre, e Piti é uma mulher não indígena, filha de um soldado da borracha. “Mas não é só uma história de amor, ou sobre os preconceitos e obstáculos culturais de um casal. É um exemplo de um passo mais adiante em relação às histórias de vida, adentrando na vida privada do casal e conhecendo essas pessoas lutadoras”, contou.

Soranz destaca que o povo Ashaninka vive em uma região de conflito entre posseiros e indígenas. “A partir da vida privada, o filme avança para a dimensão política de luta, conflito e demarcação de terras indígenas. Isso é tão importante para além dos grandes temas. Os documentários são muito importantes também como gestos políticos”, disse.

A série de webinário Amazônia em imagem e movimento: as histórias do extrativismo da Amazônia registradas pelas lentes do documentário nacional é composta por três encontros.

A primeira mesa apresenta as transformações da atividade extrativista na Amazônia e como tais transformações vêm sendo registradas pelo documentário nacional.

A segunda aborda a relevância da divulgação, por meio de filmes, de outras versões da história na legitimação de narrativas sobre os impactos dos megaempreendimentos hidrelétricos concretizados nas duas primeiras décadas do século 21 na Amazônia brasileira.

A terceira mesa, que encerra o ciclo de webinários, reflete sobre as produções mais recentes que alertam sobre as consequências do extrativismo, em especial a mineração, realizadas por cineastas e coletivos audiovisuais provenientes dos próprios territórios afetados.

*Com informações do site A Crítica/Agência Fapesp

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