Como a bioeconomia pode mudar o destino da Amazônia

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Na contracorrente da destruição, empreendedores locais aliam-se a grandes empresas e formam uma rede de negócios baseada na floresta vi

Foto: Ricardo Lima / getty images

“Quando não venho aqui, parece que as árvores ficam diferentes, meio tristes.” A expressão e a postura de Vanildo Ferreira até se suavizam na hora de falar da sua relação com a floresta. Com formação empírica de décadas no extrativismo, Vanildo coleta frutas e sementes, trabalha com pesca e presta serviços técnicos em campo para a cooperativa em Abaetetuba, Pará.

Em pé ao lado de uma ucuubeira, o produtor familiar diz conhecer o local de cada planta nos quase 4 hectares da propriedade. Os frutos dessa mesma árvore renderam R$ 54 na última safra. Se cortada, a venda da madeira daria menos da metade, e uma única vez – mas essa ainda é a principal forma de exploração da espécie, em risco de extinção devido a seu uso para cabos de vassoura e palitos de fósforo.

Se, na região amazônica, o palito de fósforo que ateia fogo na mata ainda impera, no terreno de Vanildo e dos outros cooperados tudo o que se retira da árvore são os frutos. Para chegar à comunidade de Campompema, em Abaetetuba, levam-se duas horas de carro saindo de Belém, mais uns 20 minutos de rabeta. Da casa, uma canoa a remo conduz pelos igarapés que delimitam as áreas onde Vanildo coleta frutos e sementes para diversos clientes e o comércio local.

A principal empresa parceira é a Natura, que compra ucuuba, andiroba, murumuru e açaí. Uma parte da produção é entregue já beneficiada, em forma de óleo. A comunidade é uma das 34 com as quais a Natura trabalha na Amazônia, e delas vêm 26 matérias-primas da biodiversidade. Os frutos e as sementes viram 39 bioingredientes (ou bioativos) e compõem principalmente os produtos da linha Ekos. Atualmente, 16,5% dos insumos dos produtos da empresa vêm da região amazônica, com perspectiva de expansão para 55 bioativos até o fim da década.

ANA PAULA, DA COEX CARAJÁS: Cooperativa faz o manejo sustentável do jaborandi, usado nas indústrias farmacêutica e cosmética. — Foto: Divulgação

A multinacional brasileira de cosméticos, que integra o quarto maior grupo do mundo no setor de beleza, compra outra leva de insumos da Beraca, empresa de origem paraense que faz uso sustentável da flora brasileira há mais de 20 anos e que acaba de ser completamente adquirida pela suíça Clariant. Com crescimento anual de 25% a 30%, a Beraca tem como principal comprador a indústria de cosméticos, fornecendo para nomes como O Boticário, L’Oréal, P&G, Unilever, L’Occitane au Brésil, Simple Organic, Aveda e Feito Brasil.

A produção de óleos vegetais, ingredientes minerais e demais ativos para a indústria é feita a partir de frutas, ervas, arbustos e sementes fornecidos por 1,6 mil famílias nos estados da Amazônia Legal. É na maior floresta tropical do mundo que está a origem de 80% dos produtos do portfólio – o restante vem de comunidades em outros biomas do país.

Em 2006, a Beraca foi a primeira empresa a ter certificação orgânica para a manteiga de cupuaçu, espécie nativa amazônica. “A relação do ser humano com o campo e o extrativismo é a mais antiga da civilização. No nosso relacionamento com as comunidades, aplicamos tecnologias sociais e metodologias inovadoras para agregar valor aos dois extremos dessa cadeia, que são o produtor e o consumidor”, afirma Daniel Sabará, CEO da empresa.

IFA brasileiro

O trabalho de grupos extrativistas também está por trás do jaborandi que chega à fábrica do Grupo Centroflora. Essa espécie arbustiva do Norte e Nordeste é amplamente utilizada nas indústrias farmacêutica e cosmética. Extraída de suas folhas, a pilocarpina, um dos raros ingredientes farmacêuticos ativos (IFA) brasileiros, é usada para combater glaucoma, xerostomia e, recentemente, presbiopia.

O Grupo Centroflora abastece dois terços da pilocarpina usada no mundo. São de 500 a 600 toneladas de folhas por ano, fornecidas por uma rede de 1,1 mil organizadores diretos, que movimentam 30 mil colhedores no Pará, Maranhão e Piauí. A produção de IFA é quase toda exportada, com destaque para as empresas Aurobindo, Bausch&Lomb, Advanz, Abbvie, Amneal e Tubilux. Já o mercado dos extratos para fabricação de fitomedicamentos (chamados de IFAV) é nacional, com clientes como Aché, Myralis, EMS, Sanofi, Hypera, Arese, Kley Hertz e Takeda.

Um dos maiores parceiros na coleta das folhas da planta é a Cooperativa dos Extrativistas da Floresta Nacional de Carajás, no Pará, onde 41 famílias fazem o manejo sustentável da espécie e fornecem anualmente até 40 toneladas para o grupo. “Quando se pega a história do jaborandi lá na década de 1970, não havia preocupação com a espécie, tanto que eles cortavam o pé por inteiro. Com a criação da cooperativa e a legalização do extrativismo, veio o plano de manejo para garantir a sustentabilidade da atividade e salvar a espécie”, conta Ana Paula Ferreira Nascimento, presidente da Coex Carajás.

Durante os seis meses do ano em que não há safra de jaborandi, os cooperados extraem sementes da biodiversidade para outros compradores, como a mineradora Vale. As sementes compradas pela empresa transformam-se em mudas usadas na recuperação de áreas degradadas e para a conservação de espécies.

PETER, DO CENTROFLORAO: grupo abastece dois terços da pilocarpina consumida no mundo, usada contra glaucoma e presbiopia. — Foto: Adrian Ikematsu

Um desses projetos de restauração é justamente com a Centroflora, para plantio de jaborandi em minas exploradas. “Acreditamos que o uso da pilocarpina para presbiopia vai gerar um impacto positivo no mercado, então queremos fomentar sua produção não só pelo extrativismo nativo, mas também em sistemas agroflorestais [SAF]”, diz Peter Andersen, CEO do Grupo Centroflora. Hoje a empresa desenvolve um projeto piloto de SAF com consórcio de cacau e jaborandi, em fazenda própria.

É do trabalho em cooperativa que brotam novos negócios também no campo da borracha natural, cadeia da sociobiodiversidade que vem se destacando no cenário doméstico e internacional. Na linha de artesanato e calçados, a Seringô é um empreendimento econômico coletivo que reúne hoje mais de 450 associados no Pará, entre mulheres artesãs e homens seringueiros de comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas. O segredo da qualidade dos chinelos, tênis e itens de artesanato está no beneficiamento do látex feito pelos cooperados in loco. Também na linha calçadista, o grupo familiar Doutor da Borracha produz botas, sapatilhas e sandálias gladiador na Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre.

Salto de valor

A mesma lógica de agregação de valor vista na borracha embasa a atuação da De Mendes Chocolates, vencedora do prêmio de Startup do Ano de 2021 no Fórum Mundial de Bioeconomia, realizado em Belém. O cacau nativo coletado pelas 71 comunidades parceiras já chega na fábrica fermentado e seco, pronto para a torra, e se transforma em 12 linhas de chocolates finos, no padrão do grão à barra (bean to bar).

A fermentação microbiológica e bioquímica é feita em tonéis de madeira e estufa, um processo que triplica o valor das amêndoas de cacau e eleva o preço do quilo do chocolate no mercado. A maioria das barras De Mendes é vendida a R$ 18 no site da empresa, que tem o maior público consumidor nos estados do Sudeste.

Aplicar tecnologias sociais e de ponta para dar mais valor aos produtos das comunidades tradicionais nas cadeias da biodiversidade é um dos fundamentos para o desenvolvimento socioeconômico na Amazônia e chave para o florescimento da bioeconomia. A inovação, por sua vez, está ligada tanto ao aprimoramento tecnológico quanto à inclusão de indígenas, quilombolas e ribeirinhos na geração de riqueza.

“A bioeconomia precisa ser vista como um novo modelo de negócios que tem como base a biodiversidade local, no contexto da utilização dos potenciais para os quais a Amazônia é imprescindível, e não o contrário [ou seja, que prescindem da floresta, como a produção de soja]”, diz Marcello Brito, CEO da CBKK, investidora de impacto que tem a De Mendes Chocolates como uma de suas associadas, e ex-presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag).

POTENCIAL DESPERDIÇADO: Exportação de produtos florestais do bioma representa ínfima parcela de 0,17% do mercado global. — Foto: Mateus Mendes

A lógica econômica dominante em relação à maior floresta tropical do mundo ainda a enxerga como fonte de recursos e insumos inesgotáveis para o progresso da nação. Mas o enriquecimento de poucas cadeias de commodities e de grandes empresas vem às custas de pobreza, violência e degradação ambiental.

O potencial de um novo modelo que mude esse quadro é imenso, mas os números ainda são ínfimos. Estudo do projeto Amazônia 2030 mostra que, dos 955 produtos exportados por empresas localizadas no bioma entre 2017 e 2019, apenas 64 (6,7%) são “compatíveis com a floresta” (como castanhas, peixes, óleos, cacau), o que significa 0,17% do mercado global desses produtos, de US$ 176,6 bilhões por ano.

Apesar disso, os empreendedores da floresta não desistem e fazem a Amazônia pulsar em toda a sua diversidade de oportunidades, apostando na floresta viva para gerar e espalhar riquezas.

Fonte: Um Só Planeta

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