O pecuarista Bruno Heller, preso no início do mês e apontado pela Polícia Federal (PF) como o “maior devastador da Amazônia”, transportou gado de uma fazenda da família multada por violações ambientais para outras duas sem autuações, em 2021 e 2022. No mesmo período, as propriedades venderam animais para um frigorífico fornecedor do Carrefour.
Essa triangulação é um indício da chamada “lavagem de gado”, quando bois criados em locais irregulares são repassados para áreas consideradas “ficha limpa” e, posteriormente, vendidos para grandes frigoríficos.
A prática é comumente utilizada para driblar mecanismos de controle e considerada um dos principais desafios de sustentabilidade da indústria da carne no país.
Informações de trânsito de animais obtidas pela Repórter Brasil mostram que animais criados na fazenda Formosa II – multada por desmatamento ilegal e com suspeita de grilagem – foram transferidos em 2021 e 2022 para a Formosa V e a Formosa VI, livres de implicações ambientais.
No mesmo período, estas duas propriedades, em nome de filhas de Bruno Heller, venderam animais para o frigorífico Vale Grande, do grupo Frialto. Em 2020, o próprio Bruno já havia vendido animais ao matadouro.
A Frialto possui três abatedouros no norte de Mato Grosso, todos eles habilitados para exportação à União Europeia e outros países. Foi uma dessas unidades, a de Matupá (MT), que adquiriu os animais da família Heller com suspeitas de irregularidades.
Esse mesmo abatedouro forneceu carne ao Carrefour nos anos de 2021 e 2023, segundo o aplicativo “Do Pasto ao Prato”. A ferramenta rastreia o código de vigilância sanitária encontrado na embalagem dos produtos e identifica o frigorífico de origem da carne.
Procurado, o Carrefour afirmou por meio de nota que examinou “minuciosamente o extenso banco de dados de fazendas que fornecem carne a todos os frigoríficos que abastecem o Grupo e confirmou a ausência de qualquer propriedade vinculada ao denunciado mencionado ou a indivíduos com o mesmo sobrenome”.
A Frialto, no entanto, confirmou que abateu 249 animais “em nome de Tatiana Heller”, filha de Bruno, em 2022 e 2023. O frigorífico informou ainda que bloqueou as propriedades, depois de identificar “possível ligação com não conformidades de Bruno Heller”.
A nota da Frialto reconhece o problema da triangulação de gado, mas diz não haver ferramentas para “monitoramento de fornecedores indiretos”. O grupo é um dos signatários do TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) da Carne, proposto pelo Ministério Público Federal em 2009 para que frigoríficos não comprem gado de áreas irregulares.
A Repórter Brasil enviou novo questionamento ao Carrefour, na segunda-feira (14), a respeito das unidades da Frialto que fornecem carne para o grupo, mas não houve resposta até a publicação desta matéria (leia os posicionamentos na íntegra).
Após a publicação desta reportagem, o Carrefour enviou novo posicionamento afirmando que a carne dos animais criados pelos Heller não chegou aos supermercados do grupo, apesar de os bois da família terem sido abatidos na unidade fornecedora da rede varejista.
A defesa de Bruno e Tatiana Heller afirmou, por meio de nota, que aguarda a conclusão das investigações e só se manifestará nos autos do processo, “oportunidade em que os fatos serão devidamente esclarecidos e devidamente comprovada a inocência de Bruno”.
“Maior devastador da Amazônia”
Heller é investigado pela Polícia Federal por suspeita de ter desmatado ilegalmente 6.000 hectares de floresta em Novo Progresso (PA), o que o caracterizaria como “maior devastador do bioma amazônico já investigado”. Desde 2007, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) notifica o pecuarista tentando retomar as terras que teriam sido griladas por ele.
A prisão, no último dia 3 em Novo Progresso (PA), ocorreu no âmbito da Operação Retomada. Na ocasião, Heller foi detido por porte ilegal de arma e porque os policiais encontraram ouro escondido sem documentação. O fazendeiro foi liberado no dia seguinte e responderá em liberdade pelos dois crimes.
A Repórter Brasil teve acesso às 299 páginas do processo movido pela autarquia que revela como Heller dividiu as terras supostamente griladas entre seus familiares.
Esposa, filhas, irmãos, sobrinhos e outros parentes do pecuarista foram usados para tentar regularizar as fazendas, o que o Incra chamou de “fracionamento fraudulento”.
Entre os familiares que atuavam como laranjas de Heller, segundo o Incra, está a filha dele e fornecedora da Frialto, Tatiana Heller. Em 2008, época em que o fracionamento do terreno foi realizado, ela tinha 17 anos. Isso indica, segundo o Incra, que não era ela quem explorava a área naquele momento.
Desde a década de 1990, Bruno Heller e seus familiares acumularam 43 autuações ambientais do Ibama, que vão de desmatamento ilegal à compra de gado de áreas protegidas, somando R$ 27 milhões em penalidades. Bruno recebeu, sozinho, cerca de metade das multas.
Já a filha do pecuarista recebeu três multas do Ibama, em 2023, no valor total de R$ 5 milhões por comprar e comercializar mais de 1.600 cabeças de gado criadas em unidade de conservação federal, a Floresta Nacional do Jamanxim, em Novo Progresso.
Cruzando informações geográficas das duas autuações do Ibama mais recentes no nome de Bruno Heller com imagens de satélite na plataforma Planet Explorer, é possível identificar a dimensão da devastação atribuída ao pecuarista. Em menos de cinco meses em 2021, uma área de quase 1.700 hectares foi completamente devastada, o equivalente a 11 vezes o parque do Ibirapuera, na capital paulista.
Invadindo a área da reforma agrária
Parte da área grilada por Heller (1.900 hectares) está sobreposta ao assentamento Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa. Heller é um dos 144 fazendeiros que, segundo relatório elaborado pelo Incra, invadiram a área destacada pelo governo federal para reforma agrária.
Com as invasões do agronegócio, o assentamento é afetado pelo roubo de madeira, como a Repórter Brasil mostrou em 2019, e também pela soja, que foi semeada próxima à vila que concentra casas de alguns moradores, como a Repórter Brasil denunciou em 2022. Esse tipo de cultivo contraria a finalidade dessa modalidade de reforma agrária, que deveria ser de interesse social e ecológico, destinado à subsistência das famílias assentadas.
Os conflitos por terra levaram ao assassinato de dois líderes comunitários que atuavam no Terra Nossa. Em 2018, Antônio Rodrigues dos Santos, o Bigode, desapareceu após denunciar extração ilegal de madeira dentro de seu lote. O presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar da vizinha Castelo dos Sonhos, Aluísio Sampaio (conhecido como Alenquer), passou a exigir publicamente a investigação do desaparecimento de Bigode. Também foi assassinado.
A atual liderança, Maria Márcia Elpídia de Melo, sobreviveu a um atentado e está escondida, vivendo sob a proteção do governo federal. “Os grileiros estão avançando e fomentando a venda de lotes”, disse Melo à Repórter Brasil em 2022.
O Terra Nossa foi criado em 2006 em uma área de 150 mil hectares, equivalente ao tamanho da cidade de São Paulo, localizada entre os municípios de Novo Progresso e Altamira. Ali, 350 famílias de pequenos agricultores vivem em lotes já demarcados pelo Incra, mas ainda aguardam que o órgão consolide o assentamento, com criação de infra-estrutura, concessão de crédito e auxílio técnico.
‘Lógica bandeirante’
Há exatos quatro anos, em agosto de 2019, Novo Progresso, onde estão concentradas as atividades da família Heller, foi o epicentro do episódio que ficou conhecido como Dia do Fogo, quando fazendeiros do Pará combinaram por WhatsApp para queimarem ao mesmo tempo áreas de pasto e floresta, ainda no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro (PL).
Foi também em Novo Progresso que bolsonaristas indignados com a derrota do ex-presidente nas eleições fecharam a BR-163 e atacaram policiais rodoviários federais, que tentaram acabar com o bloqueio.
De acordo com o doutor em geografia e professor da Universidade Federal do Pará, Maurício Torres, “a lógica da cidade é bandeirante, de invasão e saque”, banalizando o desmatamento e a grilagem.
É o que, segundo o pesquisador, leva os Heller a serem vistos como uma família respeitada em Novo Progresso, que está presente há mais de 40 anos na sociedade. “Quem desmata vira dono da terra e não criminoso, pois socialmente esse tipo de atividade não é considerado crime na cidade”.
*Com informações do site Repórter Brasil