O pavilhão de 480 metros quadrados construído para sediar a feira da agricultura familiar de Castelo dos Sonhos está às moscas há quase 15 anos. Inaugurada em 2008, a feira só funcionou por sete meses por falta de açaí, mel, frutas e verduras. O barracão segue desativado, em contraste com o ritmo frenético de trabalho das madeireiras, o vai e vem dos caminhões que levam o gado e a soja pela BR-163 e o zum-zum-zum constante das motosserras operadas por trabalhadores desconfiados, que surgem do meio da mata quando transitamos pelas estradas de chão às margens da rodovia federal.
“Falta produto, porque ninguém mais quer plantar. Tem alguns ex-agricultores e extrativistas batendo prancha em serraria, outros estão no garimpo ou trabalhando nas derrubadas”, conta ao Intercept um morador que prefere não se identificar. Afinal, qualquer um que se opõe aos grandes fazendeiros corre perigo por aqui, onde o dito popular ensina pela ameaça: “se você não quer vender a terra, tudo bem. A viúva vende mais barato”.
Foi neste pedaço de chão no sudeste do Pará, esparramado ao longo da BR-163, entre os distritos de Castelo dos Sonhos e Vila Isol, onde aconteceu o maior desmatamento contínuo já registrado na Amazônia. O ranking é da plataforma MapBiomas Alerta, que, desde 2019, reúne e valida os alertas de destruição da floresta. O programa concentra diversos sistemas de monitoramento, como o Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, e o Sistema de Alerta de Desmatamento, do Imazon.
O desmatamento identificado pelos satélites tem 6.469 hectares — o equivalente a 6,5 mil campos de futebol — e a destruição aconteceu em cerca de quatro meses de 2020 (de fevereiro a maio), ao custo de pelo menos R$ 13 milhões. As terras, hoje nas mãos dos grileiros, estão em uma área pertencente à União. O que antes era público, de todos os brasileiros, agora engorda o patrimônio de um trio que pode lucrar mais de R$ 100 milhões com a venda da área.
Apesar desse território pertencer a Altamira, a área urbana mais próxima é a de Novo Progresso, a quarta mais bolsonarista de todo o Brasil no primeiro turno da eleição presidencial. Com o município, os distritos de Castelo dos Sonhos e Vila Isol (conhecido como km 1.000) partilham uma mesma elite econômica especializada no garimpo, na conversão da floresta em madeira, boi e, mais recentemente, na monocultura da soja.
“A soja chegou como um câncer, um vício. Não tem mais como sair dela”, contou Marcelo Reis, chefe do escritório local da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Pará.
O perfil econômico se reflete no resumido rol de estabelecimentos comerciais instalados ao longo deste trecho da BR-163, que, além de inúmeras lojas de compra e venda de ouro, inclui empresas de produtos agropecuários, borracharias e oficinas para o conserto de tratores e retroescavadeiras, máquinas fundamentais para o trabalho no garimpo e nas derrubadas.
O ponto de partida de todas essas atividades é o mesmo: a apropriação de terras públicas. “A grilagem atua para colocar mais terra no mercado. O que vai ser feito com essa terra depende do ciclo econômico vigente”, explicou José Heder Benatti, professor titular do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará e ex-presidente do Instituto de Terras do Pará.
Nem mesmo duas forças-tarefas federais contra alguns dos maiores desmatadores da Amazônia — as operações Castanheira, em 2014, que mirou o grupo comandado por Ezequiel Antônio Castanha, e Rios Voadores, em 2016, que tentou desarticular a quadrilha de Antônio José Junqueira Vilela Filho — conseguiram intimidar os invasores de terras públicas no sudeste do Pará.
Pelo contrário, em 2019, a região foi palco do “Dia do Fogo”, quando um grupo de fazendeiros coordenou centenas de incêndios criminosos que tiveram ampla repercussão internacional. Em 2020, o Greenpeace identificaria um “esquema novo de desmatamento e negociações de terras” na região, cujo principal sintoma é justamente a ocorrência “em curto intervalo de tempo”.
A responsabilidade por esse dano ambiental — que transformou em fumaça cerca de 3,5 milhões de árvores e uma biodiversidade de mais de 200 espécies por hectare — recai sobre três homens, segundo o Ibama e a Secretaria de Meio Ambiente do Pará, a Semas.
O primeiro é Jeferson de Andrade Rodrigues, multado em R$ 15,4 milhões pelo Ibama e também pela Semas (ainda sem valor definido) por sua participação no desmatamento. Natural do Paraná, Rodrigues tem 45 anos e já foi funcionário de duas agropecuárias em Castelo dos Sonhos.
Atualmente, trabalha com compra de gado, como mostra sua descrição de perfil no Whatsapp e os diversos registros de embarque de animais publicados em sua página pessoal no Facebook. Além de sua fatia de terra no maior desmatamento da Amazônia, Jeferson também se diz dono de outras quatro áreas que, na verdade, pertencem à União. Duas delas foram desmatadas em 2021 e estão sendo divididas em lotes, procedimento que é praxe no manual do grileiro na busca pela regularização do imóvel junto ao Incra.
O segundo apontado é o pecuarista Delmir José Alba, de 56 anos. Um homem magro, alto, de cavanhaque, cuja aparência simples (bermuda, camiseta e boné) contrasta com o patrimônio, dinheiro e prestígio que sua família detém na região. Recentemente, patrocinou o mais importante rodeio de Castelo dos Sonhos, ao lado de outro poderoso fazendeiro — Manoel Alexandre Trevisan, o Maneca, acusado de envolvimento no assassinato de Brasília, uma liderança popular, há exatos 20 anos.
Natural de Santa Catarina, Nego Alba (como o pecuarista é conhecido) veio ao Pará na esteira de um tio e um irmão que estão entre os primeiros migrantes a se estabelecerem na região. Pelo menos parte de seu trajeto até Castelo dos Sonhos pode ser reconstituído a partir das multas ambientais que acumulou pelo caminho.
Em 1995, ele tomou a primeira multa ambiental em Conceição do Araguaia, na fronteira do Pará com o Tocantins. No ano seguinte, a queima de vegetação sem autorização do Ibama lhe renderia um auto de infração duzentos quilômetros ao norte, no município paraense de Xinguara. A partir de 1997, todas as multas seriam lavradas na região da BR-163, entre Novo Progresso e Altamira, onde Nego Alba, enfim, se estabeleceu. Atualmente, sua ficha junto ao Ibama totaliza 10 penalidades — por desmatamento e queimada ilegal, comércio ilegal de madeira e descumprimento de embargo, entre outros crimes — que somam R$ 11 milhões (valores atualizados pelo IPCA). Pouco mais de R$ 20 mil (0,18% do valor total) constam como quitados no sistema do órgão federal.
Tanto Rodrigues quanto Delmir assumiram a responsabilidade pelo maior desmatamento contínuo em depoimento à Polícia Civil, prestado em junho de 2020.
Augustinho Alba, pecuarista e irmão de Delmir, é a terceira pessoa responsabilizada pelo desmatamento que, em 2020, lhe rendeu uma multa de R$ 22 milhões. A cifra milionária não o intimidou. No ano seguinte, seria autuado em mais R$ 31,3 milhões por seguir com o desmatamento e impedir a regeneração da floresta.
Em nota, a defesa do pecuarista disse que “não há qualquer correlação entre a área de propriedade do Sr. Augustinho Alba e a [área] desmatada”. Também afirmou que o desmatamento ocorreu na propriedade de seu irmão Delmir, (com quem afirma ter rompido uma sociedade) e lhe foi equivocadamente atribuído pelo Ibama, após um erro na checagem do monitoramento via satélite.
“Em geral, cada região tem uma elite local que tem uma relação mais próxima com atividades de grilagem e desmatamento”, explicou a procuradora Ana Carolina Haliuc Bragança, que foi coordenadora da Força-Tarefa Amazônia, extinta no ano passado, do Ministério Público Federal, o MPF. “Isso dificulta as investigações, pois o mapeamento desses grupos depende de um conhecimento muito aprofundado das redes locais. Sem falar que eles operam totalmente fora do sistema, fazendo pagamentos com dinheiro vivo, por exemplo”.
A reportagem completa pode ser acessada nesse link
*Com informações do site Intercept Brasil