Empreender nunca é fácil. Mas fica ainda mais difícil em uma região onde os desafios de logística, transporte e comunicação ganham dimensões quase continentais.
Estamos falando da Amazônia legal, que corresponde a 59% do território brasileiro e engloba nove estados: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e (uma parte do) Maranhão.
Só para se ter uma ideia: enquanto o Brasil começa a implantar o 5G, quase uma centena de municípios da região ainda não contam nem sequer com 4G (que chegou ao resto do país em 2012).
Mesmo assim, com todos esses perrengues – e lá atrás, em 2004, há quase duas décadas –, o engenheiro florestal paulistano Mariano Cenamo topou se mudar para Manaus com apenas 23 anos de idade, para fundar uma ONG com o objetivo, ousado para a época, de promover negócios sustentáveis e viabilizar a produção de créditos de carbono.
Note, isso foi em 2004. Você provavelmente ouviu falar em mercado de carbono há poucos anos… talvez só em 2021, com a COP26.
Hoje, Mariano pode dizer que foi bem-sucedido em sua missão. Aos 42, ele é cofundador e diretor de Novos Negócios do Idesam – Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia.
O Idesam foi pioneiro em transformar uma agrofloresta que produz café em uma empresa de impacto – e também a primeira organização a promover um programa de aceleração de negócios de impacto na Amazônia, em 2018.
Hoje ele também é CEO da Amaz, aceleradora de negócios de sociobiodiversidade com atuação na Amazônia legal; a iniciativa nasceu a partir do Idesam e com o apoio da rede PPA – Plataforma Parceiros pela Amazônia.
Para investir em 30 negócios early stage até 2025, a Amaz já surgiu com um fundo de 25 milhões de reais, que utiliza capital filantrópico e investimentos privados em um mecanismo designado por blended finance, em que o capital filantrópico entra para mitigar o risco e alavancar os recursos; entre os investidores, estão Denis e Ilana Minev, das Lojas Bemol, e Átila Denys, advogado e empresário paulista radicado em Manaus, sócio do escritório DD&L.
No momento são 18 empresas investidas, com distribuição de mais de 5 milhões de reais, – em média, cada negócio recebe 600 mil reais. Alguns não estão originalmente baseados na região Norte, mas fomentam as comunidades locais e a natureza amazônica por meio de sua atividade. Entre essas empresas estão algumas que já saíram aqui no Draft, como Floresta S/A, Inocas, Manioca, Soul Brasil, Tucum e Vivalá.
A Amaz quer alavancar mais 50 milhões de reais em investimentos privados e garantir a conservação de 5 milhões de hectares de florestas, gerando renda para 10 mil famílias nos próximos 10 anos.
Confira a seguir o papo entre Mariano Cenamo e o Draft, em que ele não tem medo de falar a real do que acontece na Amazônia.
Como você decidiu fundar o Idesam, instituto que se destaca pela atuação junto a produtores rurais, comunidades tradicionais, ribeirinhas e indígenas?
Tudo começou quando tranquei a faculdade em 2000, entre o segundo e o terceiro ano do curso [de engenharia florestal na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz – ESALQ], e fui pra Austrália trabalhar em fazenda de uva e falar melhor inglês.
A Austrália sempre foi vanguardista na área ambiental. Voltei de lá vidrado no tema crédito de carbono. Achava muito interessante o conceito de valorar serviços ambientais pelo que eles prestam para a humanidade
Na época, não tinha ninguém trabalhando com isso na ESALQ. Encontrei um pesquisador do Cepea, centro que cria aqueles índices de preços agropecuários – açúcar, boi, laranja, etc. – para BM&FBovespa. Entrei nesse tema cedo, cresci muito rápido.
Tudo ia bem, eu estava empolgado. Vivia em workshops, fazia viagens internacionais para congressos, era uma trajetória promissora. Fiquei [no Cepea] quase até o final da graduação.
No último semestre, comecei a sentir falta do Mariano que tinha entrado na faculdade, e busquei uma forma de ir pra Amazônia – a grande relevância do Brasil na área florestal.
Encontrei um ex-professor, Virgílio Viana, que tinha recém-mudado para o Amazonas para ser Secretário Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. É um grande amigo e mentor.
Ele conseguiu estágio pra mim no governo [amazonense], é o que na ESALQ chamam de estágio profissionalizante. Fiquei seis meses lá, estudando o potencial de geração de créditos de carbono na Amazônia
Tive de voltar, apresentar o TCC, e saí praticamente empregado como consultor. Mas fiquei com a pulga atrás da orelha de enveredar de novo pro [mercado de] crédito de carbono.
Tinha ficado nítido na minha cabeça que os projetos florestais de carbono no Brasil estavam indo só para reflorestamento – não existia um projeto que incentivasse a contenção do desmatamento.
Me faltava conhecimento, e achei na Costa Rica um mestrado. Pedi uma carta de recomendação ao Virgílio; uma semana depois, ele me ligou dizendo: “Cara, se você está saindo do Cepea, por que não vem trabalhar com a gente no Amazonas?”
Respondi que não era minha cara trabalhar no governo. Ele insistiu: “Por que você não vem fundar uma ONG que possa apoiar o trabalho do governo do estado? Vamos ter doações…”
Na época, a maioria das ONGs na Amazônia atuava puramente na linha de pesquisa e conservação. Não tinha o conceito de desenvolvimento sustentável, de estruturação de negócios, produção, geração de renda para a comunidade…
Virgílio é famoso por ser convincente. Marcamos uma reunião no aeroporto de Congonhas e ele me convenceu a ir lá fundar o Idesam.
Eu não tinha planos de empreender. A minha geração tinha o sonho do pacote corporativo: entrar no emprego, ganhar laptop, celular e carro da empresa. Cheguei em Manaus e lá não tinha nada disso – mas eu tinha autonomia e capacidade de transformação.
Foi isso que mais me deu energia nos primeiros anos. Porque, confesso: não foi uma vez só que pensei em desistir e voltar.
Quais foram os desafios que quase te fizeram desistir?
Primeiro: tudo aquilo que eu imaginei sobre a prosperidade e a conquista de projetos não aconteceu.
O Virgílio tinha captado um grande volume de doações de fundações que acreditavam nele. E fez um ótimo trabalho no governo para conservar a floresta: foi o tempo de criar unidades de conservação, projetos de reflorestamento e de geração de renda…
Só que as fundações internacionais [olhavam pra mim] e diziam: “Quem é esse moleque?” Eu me mudei com 23 anos e enfrentei aquela burocracia terrível para abrir um CNPJ pro Idesam, tinha acabado de registrar o estatuto, mas não tinha conta bancária…
Eu chegava no banco [para abrir a conta] e me perguntavam: “Você é uma organização sem fins lucrativos, cadê o dinheiro que você quer botar aqui?” Eu dizia que ainda não tinha, estava escrevendo projetos pra conseguir o dinheiro das fundações – e, para isso, precisava apresentar o número da minha conta bancária.
Fiquei quatro meses para abrir uma conta no banco… Não consegui dinheiro [das fundações], acabei tendo que fazer consultoria por fora. Meu pai me bancou boa parte do tempo e vivi por oito meses de favor na casa de uma amiga que me recebeu pra ficar [inicialmente] uma semana
Na época, em vez de ONG, chamavam o Idesam de ING, “indivíduo não-governamental”… Porque não tinha CNPJ, não tinha nada!
Parece que você já foi de São Paulo para Manaus com a ideia de fomentar empreendimentos de impacto na Amazônia legal. Que tipo de empreendedorismo existia na região, na época?
A Amazônia sempre foi repleta de empreendedores, o problema é que os daquela época eram pecuaristas, seringueiros, garimpeiros, mineradores – ou empreendedores da Zona Franca de Manaus.
Então, não geravam conservação de floresta. Pelo contrário: eram exploradores que iam desbravar a floresta. Não existia empreendedorismo sustentável.
O que eu tinha claro pra mim é que conservar a floresta passava por valorizar a floresta em pé. Fui com essa proposta de fazer isso via pagamento por serviços ambientais, via créditos de carbono
Talvez eu estivesse um pouco à frente do tempo. Todo o trabalho que fiz naquela época, a duras custas, rendeu resultados, criou referências. Hoje, as metodologias que os projetos de carbono atuais do mercado utilizam são metodologias que eu desenvolvi.
Coordenei o primeiro projeto do Brasil verificado no Verra [plataforma de registro global que garante que os créditos correspondem a menos carbono na atmosfera] com VCS [Verified Carbon Standard], que é o padrão de carbono aceito hoje no mercado voluntário. Foi o projeto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Juma, validado em 2007.
O projeto Amazônia Agroflorestal e Café Apuí – que começou em 2006, quando o Idesam passou a fomentar o plantio de agroflorestas em áreas degradadas e produzir café com renda justa para pequenos produtores na divisa entre Amazonas e Mato Grosso – foi um divisor de águas para a ONG?
Não, ele foi o embrião. O que aconteceu em 2006 foi que recebi um prêmio. Nessa de buscar dinheiro [para o Idesam], eu escrevia dez projetos para aprovar um, porque era uma organização nova, com conceito disruptivo… poucas fundações tradicionais apoiavam o nosso trabalho.
A gente não era conhecido, não tinha conselheiros influentes ou ricos que faziam doações pro Idesam. A gente disputava no “ombro a ombro” espaço em editais.
Para o Prêmio Professor Samuel Benchimol, escrevi um projeto propondo a criação de um programa de pagamento por serviços ambientais para conter o desmatamento no sul do Amazonas, na região de Apuí, a mais desmatada na época
A gente não tinha planejamento estratégico naquela época. Era olhar e se perguntar: o que fazer?
Escolhemos [inicialmente] atuar na Amazônia ribeirinha, a Amazônia clássica de comunidades que vieram na época da borracha e vivem na floresta. Aí, pensamos em também trabalhar na região de fronteira, onde o bicho estava pegando, onde o desmatamento acontecia.
Era preciso entender o que estava acontecendo para trazer tanto desmatamento à região. Então, escolhemos Apuí, a principal fronteira na época.
Ali, a dinâmica era totalmente econômica. A gente disputava no braço com agricultores – pessoas que migravam para aquela região – qual era a melhor forma de eles encontrarem prosperidade. Simples assim! Eles escolheriam a melhor opção pra ganhar.
Eu fui lá, passei bastante tempo, fiz um diagnóstico, conversei com vários deles. Perguntei: “Se a gente encontrasse uma forma de gerar mais renda do que a pecuária, você trocaria?” A resposta sempre era: “Na hora. Se o que você trouxer melhorar a vida da minha família, a gente está dentro”
Aí, ganhei o prêmio [Professor Samuel Benchimol] e foi dali que começou o nosso trabalho em Apuí. Recebi o prêmio do Denis Minev [diretor presidente da Lojas Bemol e neto de Samuel Benchimol], que hoje é investidor da Amaz e um dos meus maiores mentores.
Ele foi um dos que mais abriu minha cabeça para essa visão de transformar em negócio, de acelerar negócio, de fazer investimento privado, de não depender da filantropia. Isso veio muito da relação que estabeleci com ele, que é muito forte.
(A Amazônia Agroflorestal e Café Apuí nasceu em 2012 como projeto filantrópico e virou empresa em 2019; a meta é chegar em 300 hectares de Sistemas Agroflorestais até 2026, contemplando 150 famílias e evitando o desmatamento de 13 mil hectares.)
Foi a partir desse prêmio que o Idesam achou o caminho de focar na Amazônia rural e florestal, de começar a tentar escalar projetos de plantar agroflorestas e de empoderar as pessoas que moram nessa região para elas manterem a floresta em pé?
Isso sempre esteve no DNA do Idesam – abordar os problemas sociais e ambientais com viés econômico.
A virada de chave do Idesam para começar a operar negócios, foi quando a gente viu que precisava entrar dentro da cadeia de valor e do negócio em um ponto onde a nossa constituição institucional de OSCIP [Organização da sociedade civil de interesse público] não poderia. Por exemplo, o Idesam não pode comprar e vender produção, não era o nosso papel.
Então, em 2010, criamos uma empresa associada ao Idesam para fazer manejo florestal, com investimento-anjo do Denis Minev, a Companhia Amazonense de Florestas – Ciaflor. E essa empresa quebrou! Tem aquela coisa de que “todo mundo tem que quebrar uma empresa pra aprender”… Esse foi um baita aprendizado
O olhar do negócio e da sustentabilidade financeira sempre estiveram presentes no que a gente fazia. E sempre soubemos que as áreas rural e florestal são duas facetas muito marcantes da Amazônia, com atores completamente diferentes.
Se você vai pra Amazônia ribeirinha, encontra os migrantes que vieram do Nordeste – cearenses, maranhenses –, que estão há muito tempo na região. A relação com a floresta já está no sangue deles, eles gostam de entrar na floresta.
Se você vai pra fronteira do desmatamento, a maioria da população é gaúcha, paranaense, catarinense, capixaba, rondoniense… é outra cabeça. Os gaúchos vêm com o conceito de que mato é ruim
Em São Paulo, se você vê qualquer jardim que está com mato, acha que está abandonado, que o sujeito é preguiçoso. O mindset orienta pra manter sempre a área “limpa”.
Por que a Ciaflor não deu certo?
Foram várias razões. A principal foi a conjuntura, que inclusive afeta grandes empresas: por exemplo, a Amata – uma das maiores de manejo florestal, dos empresários Dario Guarita e Roberto Waack – entregou recentemente a concessão de uma grande área de floresta e está focando em floresta plantada.
Que conjuntura é essa? O custo e a burocracia do licenciamento do manejo florestal praticamente inviabilizam uma operação que tem compliance e quer fazer tudo direitinho.
A concorrência com o mercado ilegal de madeira é muito cruel – você opera com custos altos e eles, com custos baixos; você enfrenta uma burocracia de seis meses pra obter uma licença e quem paga propina obtém uma semana…
A gente foi bem preparado para fazer a Ciaflor. O que eu mudaria é que fomos muito ousados no modelo de negócio…
O conceito era fomentar a produção de madeira em comunidades extrativistas aplicando o mesmo modelo que a Sadia criou para fomentar a produção de frango em Santa Catarina. A lógica era encontrar um jeito de gerar renda para as comunidades, para que não derrubem a floresta.
O arroz com feijão da produção florestal é crédito e assistência técnica. A pessoa precisa de crédito para empreender e precisa de assistência técnica para fazer isso direito e garantir retorno.
Então, a gente elaborava o plano de manejo – o documento que você licencia no órgão ambiental –, treinava o extrativista e ofertava um capital inicial para comprar uma motosserra, a comida levada quando eles ficam um mês acampados extraindo madeira… e a gente ainda garantia a compra do produto.
É isso que a Sadia faz – dá os pintos, monta a granja, dá assistência técnica e compra o frango. Tentamos aplicar esse modelo com o manejo florestal. E deu errado, porque eles demoravam pra tirar madeira, aí a venda que a gente tinha prometido não chegava, a licença demorava pra sair
Acho que estávamos um pouco à frente da cadeia de valor em que a gente tentava atuar.
Em 2017, vocês lançaram a Plataforma Parceiros pela Amazônia – PPA, uma rede de empresas comprometidas com o desenvolvimento sustentável, coordenada pelo Idesam em parceria com a USAID, agência americana de desenvolvimento. O que motivou essa iniciativa?
A PPA surgiu depois que a gente já tinha testado empreendimentos. Aprendemos muito com a Ciaflor; já tínhamos avançado com o Café Apuí; e já tínhamos validado projetos de carbono.
Em 2015, quando começaram as conversas com a USAID, o Idesam já trabalhava com grandes empresas. Por exemplo, a Natura tinha dificuldade de comprar produtos sustentáveis, porque não queria comprar no mercado um produto que tivesse explorado trabalho infantil ou pago um preço muito baixo ao produtor.
A gente já tinha trabalhado com a Natura para estruturar cadeias de fornecimento e garantir uma política de compra, estabelecer acordos de repartição de benefícios com comunidades… a Natura não vai lá na ponta, ela contrata organizações dispostas a fazer isso
As empresas olhavam pra gente como uma organização que atuava próxima do setor privado. A gente já tinha relação com a Bemol, porque já tínhamos compensado emissões dela com créditos de carbono de reflorestamento.
Aí a USAID veio procurar uma organização que pudesse fazer uma articulação com o setor privado, que encontrasse empresas dispostas a construir ou a protagonizar a construção de soluções para o desenvolvimento sustentável da Amazônia.
Ela fez isso por uma razão especial. No primeiro ano do governo de Donald Trump [2017], ele anunciou que iria acabar com a cooperação internacional e saiu do Acordo de Paris. O pessoal que já estava aqui ficou perdido.
Havia uma sobra de dinheiro – cerca de 200 mil dólares – e passaram a pensar como alavancar esse valor: “se a gente conseguir usar isso para coinvestir com empresas em projetos, o que for um vira dois”
Eles nos propuseram que trouxéssemos empresas pra coinvestir com eles e fazer aquele dinheiro crescer na forma de um projeto.
A gente já tinha começado um projeto com a Ambev, Aliança Guaraná Maués [uma rede de parceiros criada com objetivo de melhorar a qualidade de vida da população de Maués, cidade produtora de guaraná onde predomina a agricultura familiar], aí começamos a juntar as empresas e decidimos dar um nome pra essa rede, que foi batizada de PPA.
Em seu segundo ano de vida, a PPA organizou o I Fórum de Investimentos de Impacto e Negócios na Amazônia (FIINSA) e lançou uma chamada para um programa de aceleração, que deu origem à aceleradora Amaz. Qual era a sua experiência prévia com aceleração de startups e todo esse ecossistema?
Quando a gente começou o programa de aceleração, eu não entendia nada de aceleração de empresas. Em 2017, “investimento de impacto” ainda era um tema exclusivo de favelas em São Paulo.
Falava-se de investimento para inclusão de populações de baixa renda, algo na área de saúde e educação… nem chamavam de investimento de impacto, chamavam de investimento social.
Aí o Denis, com sua visão vanguardista e financeira, falou: “OK, USAID, você quer investimento nosso, então vamos dizer onde queremos investir. Não queremos fazer filantropia, já temos grandes empresas e fundações fazendo isso. O que vai resolver o problema da Amazônia e no que estou disposto a investir energia e dinheiro é para fazer algo diferente, que nunca foi feito”.
E veio a ideia de a USAID bancar um programa para apoiar empreendedores e a rede investir nos negócios.
Até o surgimento do programa PPA, não existia chamada de negócios [na região]. Hoje, você tem quatro, cinco chamadas de negócio da Amazônia, mas a primeira quem fez fomos nós
Fui garimpar na minha rede de relacionamentos quem tinha algum projeto com potencial de virar empresa. Voltei pra USAID com as indicações; acharam interessantes, mas seria preciso uma amostra maior. Então, fizemos uma chamada.
Nosso programa de aceleração surgiu muito na prática. Hoje, consigo resumir nosso foco como: oferecer pro empreendedor capital, conhecimento e rede de relacionamento. Isso veio com o tempo.
Lembro de abrir a oficina da primeira turma de aceleradas dizendo: “Vocês são cobaias. Queremos, com vocês, identificar as dores de cada negócio e do coletivo, pra gente construir formas de resolver esses problemas e ajudar vocês a crescerem”.
Em 2021, o sucesso do programa de aceleração da PPA se transformou na Amaz. O modelo de aceleração tem ciclos de cinco anos, longos em comparação com os ecossistemas do Sul e Sudeste. Isso tem a ver com a falta de formação técnica prévia dos empreendedores? Ou com um prazo mais longo de desenvolvimento de tecnologias, produtos e serviços?
Tem mais a ver com a primeira questão, mas ela é complementada pelo fato de as cadeias de valor dos negócios que a gente apoia serem mais longas: o fluxo de caixa de um negócio que planta árvores é de 20 anos, ele vai atingir o breakeven depois do ano 15.
Na verdade, esse ciclo de cinco anos é a nossa aspiração. Eu acho que vai durar mais do que isso. A gente, provavelmente, vai ter que ficar em alguns negócios por dez anos. Ou seja, tem muito a ver também com o fluxo de caixa do negócio, com modelo financeiro do negócio em si
O período temporal tem mais a ver com essa compreensão de que negócios de impacto que focam no meio rural – não só na Amazônia, em outras regiões também – têm um comportamento e retorno financeiro mais longos.
E, de fato, os empreendedores que atuam na região têm barreiras muito maiores e não dispõem de ferramentas online. Por exemplo, o empreendedor que vai trabalhar com entregas consegue, em meia hora, ir no YouTube e encontrar cursos sobre ferramentas que ele pode utilizar, histórias de sucesso e fracasso de empreendedores…
Quem está na Amazônia não tem benchmarking [local]. No e-commerce você tem Jeff Bezos, Lojas Americanas, Magalu… referências que contam o que dá certo e o que dá errado. Da Amazônia, nós não temos uma grande referência, um grande empreendedor de impacto, cuja empresa virou unicórnio
Por isso, a nossa aceleração é no modelo mão na massa. A gente entra dentro do negócio com o empreendedor e resolve problemas que encontramos no caminho. A maior parte dos problemas a gente não sabe qual é, vai descobrindo à medida que o negócio cresce.
Vocês estão com 18 empresas investidas. Quais as demandas mais comuns desses empreendedores?
O primeiro problema comum é de planejamento, operação e governança. São empreendedores muito dedicados – seja em produzir chocolate, gerar crédito de carbono ou manejar a floresta –, mas a maioria deles não é executivo. Eles são os técnicos, o coração do negócio; não são administradores por natureza.
Outro problema é não se enxergar como negócio de impacto e não saber medir o impacto que o seu produto ou serviço gera.
Estamos desenvolvendo a nossa própria forma de construir teses de impacto e de achar indicadores que ele vai utilizar pra medir se ele está gerando impacto orçamental positivo e, especialmente, como comunica esse impacto pro seu cliente, stakeholders ou possível investidor
E logística é um problema comum a todos. Todos sofrem com os altos custos de operar na região – ainda mais caros pós-pandemia.
Desafios de relacionamento com fornecedores e acesso a matéria-prima, todo mundo tem. A forma como você constrói uma relação, celebra um contrato, estabelece acordos de pagamento ou repartição de benefícios com comunidades e fornecedores locais também é diferente e demanda cuidado…
A gente já tem experiência pelo desenho operado, que começou há muitos anos, e conseguimos ajudar nisso.
Por fim, a comunicação é um problema. Você não tem 4G aqui – muitos lugares não têm nem 3G, e [a comunicação] mal funciona pelo rádio.
Eu empacotaria tudo isso tudo como o alto custo de operar a infraestrutura na região. E vale lembrar, um chocolate gourmet orgânico produzido na Amazônia compete com um chocolate gourmet orgânico produzido na Bahia, que tem uma logística melhor, acesso, telefone… isso é um baita diferencial.
Pode dar exemplos de algumas das empresas aceleradas pela Amaz que ajudam a atacar alguns dos principais desafios sociais, ambientais e econômicos da Amazônia?
Toda empresa que opera na região enfrenta problema de logística, especialmente logística fluvial… e assim nasceu o NAVEGAM. Eles são empresários de tecnologia, é uma empresa de transportes que não tem nenhum barco na frota.
É tipo um Uber fluvial mesmo. Eles instalam sistemas dentro das embarcações, conectados a um sistema de gestão e venda pela internet de espaços para passageiros ou espaços para transporte de carga
Parece loucura, mas até surgir a NAVEGAM, você não conseguia comprar um bilhete de barco pela internet. Tinha que ir até o porto, descobrir onde era o guichê daquela rota; às vezes, não tinha ninguém, e você tinha que esperar aparecer a pessoa – e só aí descobria que seu barco sairia apenas dali a dois dias…
Do lado da carga, a NAVEGAM também resolve um problema super importante: fazer o de ponta a ponta.
Por exemplo, se você quer transportar uma carga de café de Apuí até Manaus, tem que ter alguém que pegue esse café no produtor, leve até o porto e embarque o café no navio; e em Manaus, tem de ter alguém que desembarque o café e o leve até o escritório. Estamos falando de operar com três, quatro fornecedores ou transportadores diferentes, fazer a baldeação…
A NAVEGAM pega de ponta a ponta. Além disso, ela instala GPS em todas as embarcações que opera, então você consegue monitorar onde está a carga. Antes, atrasava um dia sem você saber o porquê; tentava ligar pro capitão do barco e o celular não tinha cobertura…
Eles estão dando um salto grande, crescendo muito. Depois do nosso investimento, receberam um investimento direto da Bemol e hoje negociam a rodada série A com um fundo.
Que outra empresa acelerada, de outra frente, você destacaria?
Destacaria a brCarbon, uma prestadora de serviços especializada em conservar florestas ameaçadas. Basicamente, ela estabelece contratos com proprietários de grandes áreas ameaçadas de desmatamento, para monetizar o ativo florestal em créditos de carbono.
A brCarbon certifica, faz toda a quantificação e leva esse crédito de carbono ao mercado. Quando vende, uma parte dos valores fica com o produtor e outra fica com a empresa
Eles assumem a gestão da área, instalam antenas para monitorar se está tendo desmatamento ou ameaça… fazem todo o trabalho de distribuição de renda ou de desenvolvimento de comunidades – quando elas vivem dentro da área e são vetores de desmatamento.
Como o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips repercutiu no ecossistema de empreendedorismo local? Assim como os ativistas, os empreendedores de impacto que atuam na região também sofrem ameaças e correm risco?
As ameaças estão sempre presentes. Infelizmente, a Amazônia é um ambiente com muita atividade ilegal e cada vez mais atividade criminosa, especialmente ligada à exploração de recursos naturais como peixe, madeira e mineração.
O garimpo voltou a crescer bastante na região de fronteira. Tem também o tráfico de drogas – muita cocaína produzida no Peru e na Colômbia entra no Brasil por ali. São forças poderosas e ameaçadoras, então a linha de frente é um ambiente hostil para se trabalhar
Como Dom Philips, Bruno, e tantas ONGs, o Idesam atua na linha de frente; temos um trabalho com políticas públicas, advocacy, damos assistência técnica a produtores rurais. E quem está na linha de frente combatendo o ilegal, denunciando, informando, ajudando populações vulneráveis, sempre está num nível de ameaça maior.
Tem empreendedores que estão também nesse nível [de risco], que atuam com populações em situação de fragilidade, de ameaças…, então sofrem com isso.
Não consigo dizer se teve uma influência imediata da morte dos dois nesses empreendedores… Mas, realmente, elas refletem um escalonamento da gravidade do meio rural e florestal da Amazônia.
Tem muito desmatamento por reflexo de conflitos fundiários, da ocupação ilegal de terras, do desrespeito ao direito, especialmente de populações indígenas e comunidades tradicionais. Tudo está aumentando. Isso é inegável
A curto prazo, se não tiver uma atuação mais forte do governo e o fortalecimento dos órgãos, especialmente Funai, IBAMA e ICMBio, a situação só vai piorar.
Como está a economia local, hoje? Ainda é muito dependente da Zona Franca de Manaus? Esse modelo se esgotou?
No macro, menos de 8% do PIB brasileiro vem da Amazônia Legal brasileira. E esses 8% são muito mal distribuídos do ponto de vista da economia que a gente gostaria de ver no futuro, que usa a floresta de maneira sustentável.
Esses bens e serviços estão concentrados na Zona Franca de Manaus, na mineração do Pará e no agronegócio no Pará, Mato Grosso e Rondônia – no uso insustentável dos recursos naturais
Mais de 80% do PIB do Amazonas vem de Manaus, por isso chamamos Manaus de cidade-estado, tudo acontece lá. Mas tem uma oportunidade de começar a fomentar e levar dinheiro e pessoas para empreenderem no interior, de uma forma diferente.
Vejo o interesse crescente de empresários locais e internacionais, de fundos de investimento corporativos e de family offices querendo fazer algo pela Amazônia, porque existe uma demanda.
Hoje, o mundo cobra o Brasil pela conservação da Amazônia, e pelo lado do carbono é de lá que vêm 55% das nossas emissões. Então, se o problema das emissões de carbono no Brasil está na região amazônica, é também dali que vem a solução
Estão começando a proliferar iniciativas para resolver o problema das emissões, porque isso vai virar crédito de carbono, que por sua vez está virando uma moeda.
Além do crédito de carbono, existe uma demanda de consumo em função da campanha que fizemos da Amazônia em Casa, Floresta em Pé. Num momento de pouca esperança, durante a pandemia, conseguimos levar produtos para as pessoas comprarem, ajudar na geração de renda para comunidades e na conservação da floresta.
Tem uma demanda suprimida por produtos de impacto. Cada vez mais pessoas querem consumir roupas e alimentos que não fazem mal ao planeta ou, de preferência, ajudam a resolver problemas sociais e ambientais
Você tem muito mais demanda do que oferta por produtos que ajudam a salvar o planeta e isso está começando a atrair muitos empreendedores e investidores para a Amazônia. A economia do futuro vai estar muito baseada nessas oportunidades, que são grandes.
As oportunidades da Amazônia são inversamente proporcionais ao volume de negócios, então [hoje] tem muito mais gente querendo fazer algo pela Amazônia do que gente fazendo de fato. Uma hora isso vai virar, né?
Há mais de três décadas o modelo de ocupação da região é equivocado. O que falta para uma mudança no modo de enxergar a floresta e a região?
Duas coisas. Primeiro, é preciso vontade política. O governo [federal] precisa enxergar a região com mais ambição, com visão de longo prazo, com vontade de construir uma economia. Vai ter de desvincular-se de setores criminosos e pouco interessantes para o futuro do Brasil.
Não é só a Amazônia, isso acontece em outras regiões, também. Empresas que pouco nos interessam enquanto nação, mas que favorecem poucos grupos e alguns partidos… Políticos que se sustentam em cima disso. Infelizmente, é uma dura realidade do Brasil. E na Amazônia isso se agrava por ser uma região muito vasta, pouco populosa e com baixa presença do Estado.
A segunda coisa que falta é a nossa elite econômica – nossas grandes empresas, grandes fortunas – toparem o desafio de liderar a construção dessa economia: a construção de uma nova geração de empresas, uma nova onda de investimentos em empreendedores que vão resolver os problemas sociais e ambientais da região
Sem isso, por mais que a gente venha a ter um governo comprometido em reverter a situação, não vamos construir esse novo caminho.
Uma transformação econômica sem a presença de investidores, empreendedores, de grandes empresas não acontece num país capitalista. A elite econômica brasileira poderia ter um protagonismo muito grande. Ela tem que começar a se mostrar.
Fonte: Projeto Draft