Brasil investe pouco em ciência na Amazônia; região Norte tem 2,75% dos doutores titulados no país

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Região possui baixo percentual de cursos de pós-graduação e, consequentemente, um número menor de profissionais em relação a outras regiões do país

A Amazônia, área de maior diversidade do planeta, é detentora de uma das melhores universidades do mundo, a Universidade Federal do Pará (UFPA), e abriga também a instituição científica mais antiga da região, o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). Apesar de ser palco de centenas de demandas de pesquisas por conta da singularidade de seu bioma, saberes e povos, a Amazônia possui baixo percentual de cursos de pós-graduação e, consequentemente, baixo número de doutores e mestres em relação a outras regiões do país – é o que aponta o levantamento do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) sobre a formação e o emprego formal dos mestres e doutores titulados no Brasil.

A pesquisa revela que, em 21 anos (de 1996 a 2017), a região Norte foi responsável por apenas 2,75% dos doutores titulados no país, formando 802 pesquisadores nesta categoria, enquanto o número total de doutores do Brasil foi de 29.113 no período. Um dado mais recente, de 2020, revela que a Amazônia Legal ainda detém a pior taxa de mestres e doutores, com 18,5 profissionais por 100 mil habitantes, enquanto a média do país é de 40,9. Na região Sul, por exemplo, a cada 100 mil habitantes, são 56,2 mestres e doutores.

“Perdemos colegas pesquisadores, jovens talentosos, que foram para outros países que garantiram apoio para o desenvolvimento de suas pesquisas” – Janice Muriel da Cunha, professora da UFPA.

Números mais atuais da UFPA e do MPEG mostram que as duas instituições, juntas, somam 151 cursos de pós-graduação, entre mestrado e doutorado, e formam, anualmente, 1.575 pesquisadores stricto sensu na região. São profissionais que, em suas linhas e grupos de pesquisa, chegam a produzir 1.802 publicações por ano – resultados que são fruto da persistência no fazer científico, frente aos desafios impostos pela desigualdade de investimentos no país.

Distribuição desigual dos recursos é histórica

(Igor Mota / O Liberal)

Para a professora da UFPA, Janice Muriel da Cunha, que coordenou o Programa Institucional de Autoavaliação da Pós-graduação, essa disparidade de formações entre a Amazônia e o restante do país é uma construção histórica, consequência de uma tradição em divisão desigual de recursos: “Outras regiões do país receberam, historicamente, maior proporção de universidades, servidores, cursos e aporte financeiro para custeio e financiamento para infraestrutura”, explica.

A UFPA possui, hoje, 96 cursos de mestrado e 48 de doutorados, com 21 deles funcionando em municípios do interior do estado. Esses cursos formam cerca de 1.200 mestres e 350 doutores por ano. Se considerar também os cursos lato sensu, que compreendem as especializações e residências, o número de pós-graduandos da universidade, atualmente, chega a 9.424 alunos. Janice acredita que esses números deveriam ser ainda maiores, com o devido investimento, para dar conta das demandas de pesquisa da região e chegar à equidade em relação ao restante do Brasil.

“O porte e a complexidade da instituição multicampi na Amazônia, bem como a heterogeneidade de áreas de conhecimento dos cursos, demandam uma proporção ainda maior de vagas docentes, além de programas persistentes de bolsas e recursos de custeio para formar mestres e doutores em proporções equivalentes aos de outras regiões do país”, avalia.

Para estudantes, é difícil se formar; para pesquisadores, permanecer no país

Dados da universidade dão conta de que, pelo menos nos últimos seis anos, o investimento em custeio – valor distribuído, entre outras coisas, para o pagamento de bolsas de pesquisa – sofreu um corte de 40%, o que também tem impactado significativamente na formação dos estudantes, já que 85% dos discentes da UFPA se classificam em situação de vulnerabilidade socioeconômica.

“Notamos que os estudantes têm vivido com mais dificuldades para se manter e se sustentar. Alguns não conseguiram voltar a estudar até o momento. Outros dizem que persistem pela motivação em aprender e pela responsabilidade com a família e comunidade, que os apoiam conjuntamente com grande esforço”, conta a professora Janice.

“Minha vida virou um inferno. Fiquei com medo de ser morta. Recebia ameaças terríveis na internet. E apesar do meu emocional abalado, continuei, e hoje estou aqui” –  Cris Guimarães, mestranda em Comunicação.

Um desses alunos é a mestranda em Comunicação Cris Guimarães Cirino da Silva, de 44 anos, que conta que depende integralmente do valor da bolsa de pesquisa para se manter no curso: “É desafiador. A dificuldade está em você ter que escrever cientificamente preocupada em pagar o aluguel, a energia, a internet e se alimentar. Sem falar no transporte. Eu sou mãe solo e isso é um fator que dificulta também”, diz.

Além dos fatores estruturais, Cris relata que também enfrentou ataques e ameaças de morte por causa de seu tema de pesquisa, desenvolvido no campo político, o que seria outra face das dificuldades de fazer ciência na Amazônia, que ainda é pouco falada: “Minha vida virou um inferno. Fiquei com medo de ser morta. Recebia ameaças terríveis na internet. E apesar do meu emocional abalado, continuei, e hoje estou aqui. Só estudando a gente conseguirá ter pensamento crítico e colaborar para uma vida melhor”, afirma.

Outra consequência da falta de investimento em produção científica na Amazônia tem sido a perda de pesquisadores que chegam a se formar na pós-graduação, mas vão embora do país: “Perdemos colegas pesquisadores, jovens talentosos, que foram para outros países que garantiram apoio para o desenvolvimento de suas pesquisas”, relata a professora Janice.

O reitor da UFPA, Emmanuel Zagury Tourinho, chama esse fenômeno de “fuga de cérebros” – prática que, na visão do gestor, pode ser percebida em todo o país de modo geral: “São muitos pesquisadores qualificados que não encontram oportunidade para trabalhar no Brasil e que são recrutados para trabalhar em instituições de países estrangeiros, que oferecem boas condições. Eles dificilmente retornam para o Brasil”, explica.

Tourinho enfatiza que esse movimento significa uma grande perda para o país, o que ele define como um contrassenso: “Nós fazemos um investimento enorme para preparar essa inteligência que pode nos ajudar a salvar o Brasil dessa situação crítica e, quando esse pesquisador está pronto, acabamos entregando para que outro país usufrua da qualificação dele. Isso só pode mudar se tivermos um ambiente de maior investimento em ciência e tecnologia”, afirma.

Convicção sobre a importância da ciência tem sustentado pesquisadores

Mesmo diante de grandes entraves, a UFPA tem colecionado importantes conquistas, como figurar entre as melhores universidades do mundo, segundo o QS World University Ranking 2023, publicado em junho deste ano, e a elevação em 75 posições no SCImago Institutions Rankings (SIR 2022), que avalia a influência científica das instituições de ensino e pesquisa pela análise da repercussão da produção científica nas bases de dados internacionais.

Esses resultados são, na avaliação de Tourinho, frutos de esforços coletivos da comunidade acadêmica, motivados pela confiança na produção de conhecimento da e na Amazônia como um dos únicos caminhos capazes de mudar a situação que ele define, hoje, como dramática: “Em seis anos, a produção científica da UFPA nas melhores revistas do mundo cresceu 70% e o impacto da produção aumentou 150% no mesmo período. É um resultado baseado no esforço e dedicação da comunidade e em políticas institucionais que estimulam e apoiam esse esforço científico. Isso mostra que nós fazemos muita ciência e ciência de altíssima qualidade – o que justificaria ainda mais apostar nesse parque científico que está instalado na Amazônia”, afirma o gestor.

Para a estudante Cris Guimarães Cirino da Silva, é o amor pela ciência e a certeza de que somente a educação pode dar esperança de um futuro melhor que ela resiste e faz planos de continuar na carreira acadêmica: “Pretendo contribuir com a minha pesquisa sobre a Amazônia e pela Amazônia, já que sou paraense e mulher numa região cheia de gente competente, mas pouco assistida pelos governos que já passaram. Tenho como meta fazer o pós-doutorado fora do Brasil, mas voltar para cá e colocar em prática o que possivelmente aprenderei no exterior”.

No Goeldi, falta de recursos impacta nos resultados

Além da UFPA, a região amazônica também conta com outro importante centro de pesquisa sediado em Belém, no Pará – o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), instituição com 155 anos de existência e pioneira nos estudos científicos dos sistemas naturais e socioculturais da Amazônia que tem apresentado não apenas falta de recursos financeiros e estruturais, mas também de recursos humanos para dar continuidade aos trabalhos.

Com sete programas de pós-graduação, a instituição titula cerca de 25 mestres e doutores por ano, responsáveis por aproximadamente 300 publicações anuais, além de 100 projetos em atividade. Mas os resultados poderiam ser muito maiores com a dedicação adequada de recursos, afirma a diretora do MPEG, Ana Luisa Kerti Mangabeira Albernaz.

“A falta de recursos implica em laboratórios com deficiência de equipamentos importantes ou de manutenção dos equipamentos existentes, dificuldades na obtenção de insumos para o funcionamento dos equipamentos e processos laboratoriais. Também há pouco recurso para a pesquisa de campo, que muitas vezes é a base para a geração de informações novas. Isso reduz a vantagem competitiva do pesquisador da região em relação ao de outras mais bem atendidas em recursos para pesquisa”, esclarece.

Instituição tem poucos pesquisadores

Com tantas limitações, a realidade da pesquisa no Museu Emílio Goeldi acaba sendo de falta de mão de obra, já que mais grupos poderiam ser criados se houvesse incentivo suficiente para dar suporte a um número maior de pesquisadores. Além disso, a instituição tem sofrido com a perda de linhas de pesquisa importantes, devido à redução cada vez mais acentuada de seu quadro funcional, no qual menos de 50 dos 200 funcionários são pesquisadores.

(Filipe Bispo / O Liberal)

“Perdemos pesquisadores na área de manejo florestal e da pesca, por exemplo. Seria essencial que novas lideranças pudessem ser absorvidas para assegurar a contribuição científica nas discussões sobre as políticas públicas relacionadas ao uso desses recursos. Além disso, muitas outras cadeias produtivas importantes para a Amazônia, como as do açaí, andiroba, cacau, óleos de palmeiras etc., precisam de mais atenção e de mais pesquisadores dedicados a elas”, informa Ana Luisa.

Neste cenário, outras áreas de grande interesse para a Amazônia ficam prejudicadas pela falta de profissionais, conforme elenca Ana Luisa: potenciais de descoberta de novos ativos da biodiversidade, desenvolvimento de tecnologias de recuperação ambiental (necessária para a recuperação de mananciais, por exemplo), de geração de renda e qualidade de vida para as populações locais. “São áreas que sempre estiveram e estão no radar da instituição, mas cada vez com menor potencial de serem atendidas à medida que o número de pesquisadores é reduzido”.

“Vimos vários talentos que tinham interesse em permanecer atuando na Amazônia irem embora por falta de oportunidade de emprego para permanecerem” – Ana Luisa Kerti Mangabeira Albernaz, diretora do MPEG.

Apesar da demanda, oportunidade de trabalho são escassas

Assim como a “fuga de cérebros”, citada por Emmanuel Tourinho, a diretora do Museu Emílio Goeldi descreve o aumento da dificuldade de seguir carreira na área da pesquisa, com um número cada vez maior de concorrentes para as oportunidades que são abertas na instituição:

“Muitas das vagas recentemente abertas para concursos têm tido mais de 30 candidatos. Esse quantitativo mostra que há pessoal qualificado interessado em atuar na região, mas que não encontra oportunidade. Dessa forma, mesmo aqueles que fizeram todo o esforço para se formar, algumas vezes, não conseguem permanecer na carreira ou na região, então procuram outras formações ou se mudam para regiões com mais oportunidades. No Museu Goeldi, vimos vários talentos que tinham interesse em permanecer atuando na Amazônia irem embora por falta de oportunidade de emprego para permanecerem”, relata.

Dificuldades colaboram com o “colonialismo científico”

Ter conhecimentos produzidos sobre a Amazônia por pesquisadores de outras regiões, mesmo de outros países, que pouco conhecem, ou “conhecem à distância” a realidade da região é um dos problemas epistemológicos conhecido como colonialismo científico, que vem sendo cada vez mais discutido no meio acadêmico – destaca Ana Luisa Albernaz. Ela diz que o grande risco dessa realidade são pesquisas que propõem soluções limitadas para problemas complexos que só quem conhece a Amazônia a fundo poderia responder:

“A maioria das soluções extrínsecas leva em conta apenas o aspecto econômico e, em alguns casos, o ambiental, mas, na maioria das vezes, ignoram os aspectos socioculturais, que são decisivos para promover um desenvolvimento mais harmônico e a manutenção da qualidade de vida não apenas das populações locais, mas de todo o mundo devido à sua importância para a regulação do clima”, explica a pesquisadora.

Para reverter esse cenário e tentar mudar essa realidade, Ana Luisa defende que uma distribuição mais equilibrada dos recursos para educação e pesquisa científica na Amazônia precisa começar a ser feita o quanto antes: “O principal caminho são investimentos em ordens de magnitude acima dos existentes para a região, hoje. Eles permitiriam o desenvolvimento de melhores soluções para o futuro da Amazônia e um melhor aproveitamento de seu enorme potencial”.

Fonte: O Liberal

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