O pajé Nato Tupinambá tem o dom de enxergar os encantados da natureza, entidades que povoam rios, igarapés, terras e florestas – e às quais deve-se sempre respeitar sob pena de castigos dos deuses. Também é portador dos saberes ancestrais de cura – para as dores do corpo e da alma. Ele está no quintal de sua casa em Alter do Chão, alcunhado por guias turísticos de “caribe amazônico”. Parentes fiam colares, brincos e braceletes de miçangas. Entre árvores, matas e arbustos, o pajé colhe folhas, amassando-as na mão.
“Isso é breu branco. Tira maus espíritos. Cura a panema, para quando o pescador e o caçador não conseguem trazer alimento para casa. E a resina a gente usa em ritual com maracas, para defumação… Essa é a sacaca, para proteger os caçadores que adentram a mata. E tem a folha de canela, para trazer prosperidade…”
Agora dentro da casa – com paredes vazadas de madeira e teto de palha seca – o pajé Nato mescla líquidos misteriosos à folhagem de breu em uma cuia. Bafora tabaco. Acende pau-santo. Empunha a maraca. É hora da benzedeira.
E, entre arômatas, rezas e mantras xamânicos, ele versa sobre uma farmácia chamada Amazônia – que, por ironia infeliz, é envenenada pelo tal progresso.
Na Floresta Encantada, uma exuberante mata de igapó a menos de três quilômetros da casa do pajé, a artesã indígena Vandria Borari fala sobre corpos que ardem, mas nunca viram cinzas, enquanto a floresta é devorada em nome dos interesses empresariais. Ela já discursou na ONU e rodou a Europa denunciando ações criminosas na região amazônica: do garimpo, do agronegócio, da grilagem, de mineradoras e de madeireiras… E, por isso, sofreu ameaças e intimidações.
“A nossa luta é através dos nossos corpos”, diz; e logo explica. “Nós, povos indígenas, temos a floresta como a nossa casa. Dela tudo tiramos, tudo com total respeito. Pedimos licença. Ela é nossa forma sustentável de viver; e não de sobreviver. Nossa cultura está na floresta: ela é extensão do nosso corpo.”
Desde cedo, Vandria aprendeu a mapear nas bordas d´água os pontos com a boa (e a má) argila para suas cerâmicas e esculturas, um saber que ela aplica também à política. “Escassez populacional” e “ocupar pra não entregar” tornam-se, em parte, justificativas ultrapassadas para ações predatórias. O discurso agora precisa ser outro, sugere.
“Hoje, as grandes corporações argumentam que têm tecnologias sustentáveis para combater as mudanças climáticas. É uma propaganda falsa diante da catástrofe e dos impactos que elas causam em nosso território”, aponta esta borari, que integra a Associação Kuximawara de artistas e artesãs indígenas de Alter do Chão. “É fundamental que o governo dialogue com as comunidades. Há várias iniciativas ecológicas que nós, povos indígenas, desenvolvemos no território: arte, agricultura familiar, pesca, ecoturismo, remédios de plantas de cura… É preciso a valorização das comunidades e dos produtos ecológicos para, assim, desenhar melhor as tecnologias que o governo venha incentivar.”
Entre o desastre e os novos impasses
Vandria Borari e o pajé Nato Tupinambá – assim como pesquisadores, artistas, ambientalistas e outras lideranças indígenas – estiveram presentes na quarta edição do Cinturão Cultural do Tapajós, realizado na tarde do dia 29 de junho, em Santarém, Pará. O evento foi promovido e organizado pelo Instituto Sebastião Tapajós em parceria com o Núcleo da Promoção Étnico Racial do Ministério Público do Estado do Pará, o Projeto Luz e Ação da Amazônia, a Universidade Federal do Oeste do Pará, o Instituto Cabana do Tapajós, a Plataforma Latino-americana pela Justiça Climática e as Karuana.
Durante o evento também foi lançado o Glossário Ilustrado da Justiça Climática em uma edição trilíngue elaborada pelo projeto Árvore Água. Patrícia Kalil, uma das integrantes do projeto, afirma que o objetivo é difundir temáticas cruciais para compreender as pautas climáticas, de forma pedagógica, sem os jargões técnicos — e pode ser utilizado em escolas e comunidades para a formação de jovens para as discussões da COP30. A versão digital do material está disponível aqui.
Os debates do evento localizam-se em um contexto turbulento, entre o desastre bolsonarista e os impasses do governo Lula. Os últimos quatro anos foram de passar a boiada, desmonte e militarização de órgãos ambientais de fiscalização e ataques virulentos aos povos originários. O desmatamento na Amazônia cresceu 150%. Lula chegou ao Planalto com a promessa de colocar a pauta ambiental no centro da política. Retomou o Fundo Amazônico, paralisado desde 2019, e lançou o Plano Amazônia para ampliar o cerco ao desmatamento. Porém, cedeu às pressões do Centrão e esvaziou os ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas, insiste na exploração de óleo na foz do Amazonas e, recentemente, anunciou um aporte de 7,6 bilhões do BNDES ao setor agropecuário.
Diante das várias ameaças que afligem – e outras que rondam – a Amazônia, o Cinturão discutiu as ações e estratégias dos grandes poluidores na região, especialmente agora que o Brasil, pela primeira vez, sediará a Conferência do Clima da ONU, a COP30, em 2025, na cidade de Belém, também no estado do Pará.
A captura dos debates climáticos
Mas o que esperar desta próxima COP? A colombiana Nathalie Rengifo, que integra a Plataforma Latino-americana pela Justiça Climática, adverte: será preciso uma árdua batalha para que os povos amazônicos sejam ouvidos, assim como superar a ideia, muitas vezes sustentada até por governos progressista, de desenvolvimento baseado na extrativismo predatório. Afinal, são 28 anos de convenções enquanto as emissões e a crise climática só cresceram, analisa ela.
“As negociações por uma mudança climática, infelizmente, não estão avançando nem gerando diálogos reais. Ao contrário: as convenções estão, cada vez mais, priorizando a voz daqueles que, justamente, geraram a crise climática.”
Através de dados da campanha Global Witness, Rengifo aponta que, na última Cúpula do Clima da ONU, realizada no Egito, o número de delegados ligados às corporações de combustíveis fósseis aumentou 25%. Foram mais de 600 representantes, direta ou indiretamente, a serviço dos interesses dos grandes poluidores – quantidade que supera as delegações de 10 dos países mais impactados pelo clima.
O advogado indígena Jayro Salazar, que integra a equipe jurídica da União de Afetados e Afetadas pela exploração das Petroleiras de Chevron/Texaco no Equador, alerta para a catástrofe que é a atuação destas gigantes petroleiras na Amazônia – e que deveria servir também ao governo brasileiro. A Chevron, por exemplo, atuou no Equador de 1964 a 1990 – e afetou a vida de mais de 30 mil indígenas e camponeses, em um dos maiores crimes ambientais das últimas décadas. O resultado: a floresta perdeu boa parte de sua biodiversidade; as águas estão poluídas, impróprias ao consumo; e os povos originários da região apresentam o maior índice de casos de câncer do país, hoje tratado como uma nova epidemia, como apontam estudos de diversos institutos médicos do país.
Há 30 anos, conta Salazar, eles lutam por reparação em cortes nacionais e internacionais. Em 2018, no entanto, veio o absurdo: o Tribunal Permanente de Arbitragem de Haia considerou que o Equador violou um Tratado de Proteção de Investimentos entre Washington e Quito, e decidiu que o Estado equatoriano deveria pagar uma indenização para a petroleira estadunidense.
Amazônia acossada
Há quatro monstros que assolam o rio Tapajós, diagnostica o padre Edilberto Sena, do Movimento Tapajós Vivo – e fundador da Rede de Notícias da Amazônia, uma teia de comunicação popular na região. Ele não tem papas na língua, nem cede a intimidações, para denunciar os crimes ambientais na região do Tapajós.
O primeiro dos monstros, diz, é o garimpo que causa danos irreparáveis à natureza – e, muitas vezes, está ligado a grupos criminosos que perseguem povos originários e defensores dos direitos humanos. Não pode haver “garimpo legal”, a gente come tucunaré temperado com mercúrio, esbraveja.
A outra besta é a logística do agronegócio: a construção de portos utilizados por grandes corporações como a Maggi e a Cargill, e os gigantescos comboios que atravessam as águas, desequilibram todo o ecossistema – e a vida de comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas .
A terceira é o Ferrogrão, via férrea que interligará o Porto de Mirituba, no Pará, ao município de Sinop, no Mato Grosso – atravessando 14 aldeias indígenas e o Parque Nacional do Jamanxim – e que pode devastar uma área equivalente ao estado do Rio de Janeiro.
“O pessoal do Mato Grosso está muito feliz”, constata o sacerdote ativista. “Porque vão economizar muito dinheiro enquanto a gente vai à merda.”
O quarto e último mostro que ele aponta são os projetos hidrelétricos no Complexo do Tapajos. Está prevista a construção de três usinas: a de Cachoeira do Caí, de Cachoeira dos Patos e de Jamanxim. Recentemente, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) prorrogou o prazo para que a Eletrobras — e a sua subsidiária, a Eletronorte — elaborem estudos de viabilidade técnica, ambiental e econômica. A ameaça, portanto, é permanente.
Para o padre Edilberto, é preciso construir uma articulação robusta entre academia, ativistas, povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas e movimentos sociais, sem disputas de protagonismo, para propor saídas a estas forças devastadoras.
Descolonizar o desenvolvimento
Diante das várias frentes de devastação da floresta, é preciso resistência e ganhar tempo, sugere Sérgio Leitão, diretor do Instituto Escolhas, organização que desenvolve estudos e análises sobre para o desenvolvimento sustentável. Segundo ele, a recuperação de áreas desmatadas e o plantio de comida, principalmente legumes e verduras, têm o potencial de gerar centenas de milhares de empregos – e reduzir a pobreza na região.
“Se não lidamos com o problema da pobreza na Amazônia, vamos perder o debate”, diagnostica ele. “Bolsonaro teve um apoio quase majoritário na região amazônica. Ou encaramos que é preciso gerar emprego e reduzir a pobreza, gerando alternativas, ou o desenvolvimentismo vai atropelar a região.”
Raquel Tupinambá é doutora em antropologia e a presidenta do Conselho Indígena Tupinambá. Uma jovem altiva que, de rosto pintado e cocar, recorda os tempos brutais da ditadura militar na Amazônia — quando povos indígenas eram tratados como mão de obra barata ou escravizada — para provocar sobre o conceito de pobreza.
“Até hoje é assim. Deem uma olhada no porto de Santarém. Vejam como tem muitos de nossos parentes carregando os navios. Como nossos parentes são mortos nas periferias de Santarém.”
Uma noção colonizadora de pobreza, analisa ela, arraiga-se entre os povos originários. “É um processo violento. Somos colocados como pobres e miseráveis. Mandioca, açaí, buriti e outros passaram a ser vistos por nós mesmo como alimentos de pobres. E viemos para a cidade porque nos fizeram acreditar que somos pobres.”
Segundo ela, uma Educação libertadora pode contribuir para uma nova visão sobre a Natureza, os povos originários e para uma visão descolonizadora de “desenvolvimento amazônico”.
“Até hoje, nas escolas a gente sempre aprende a importância dos ‘grandes empreendimentos’ na Amazônia. Que o desenvolvimento está sempre no dinheiro. Que os povos indígenas não desenvolveram tecnologia. A primeira coisa é reconhecer que eles sempre fizeram ciência e tecnologia. A Amazônia é um exemplo, com a domesticação das plantas, mas esse conhecimento foi invalidado com o processo de colonização.”
*Com informações do site Brasil de Fato