Deveríamos liderar campanha mundial por governança internacional de todas as florestas do mundo, não apenas da Amazônia
Quando em 1845 os ingleses tentaram impor ao Brasil a Lei Aberdeen, que proibia o tráfico, muitos brasileiros usaram a soberania nacional para justificar o direito de continuar trazendo escravos da África. Alguns lembravam da hipocrisia inglesa, que por séculos se beneficiou da escravidão.
Poucos lembram desta história quando hoje, em nome da soberania, criticam Leonardo Boff, por defender regras internacionais para impedir a devastação da Floresta Amazônica. Outros dirão que há grande diferença entre tráfico de escravos e queima de florestas. Não percebem que o mundo passou a ter uma consciência mundial que atravessa fronteiras em relação a outros valores morais, além da escravidão. É por esta consciência que os dirigentes da Fórmula 1 não aceitaram a desculpa de Nelson Piquet, ao dizer que, no Brasil, a expressão “neguinho” é uma manifestação brasileira de carinho. Até sem perceber, ele usou a soberania nacional para definir racismo com olhos brasileiros.
Mas, a soberania não pode mais ser usada para justificar a prática nacional de racismo, exploração sexual ou laboral de crianças, nem a depredação ecológica.
Hipocritamente, mas corretamente do ponto de vista progressista para o futuro da humanidade, os que inventaram o racismo, formaram o capitalismo destruindo suas florestas, usando trabalho escravo e infantil, matando índios, agora vão boicotar o Brasil em tudo que representar ameaças a valores considerados universais. Mas não usemos a desumanidade antiga deles para justificar nossos erros de hoje. No lugar de usar um conceito indecente de soberania para justificar e defender posições reacionárias, racistas, depredadoras, antisociais, como usaram os escravocratas no século XIX, deveríamos, no século XXI, liderar campanha mundial por governança internacional de todas as florestas do mundo, não apenas da Amazônia, apoiar todos os imigrantes do mundo, afinal, o Mediterrâneo é a Amazônia dos europeus, nós queimamos árvores e eles afogam imigrantes; defender o direito de toda criança à escola e não ao trabalho, não importa sua nacionalidade; e lutar para o racismo ser um crime contra a humanidade.
Em setembro de 2000, em uma fala em um evento vinculado à ONU, defendi a internacionalização de todos os patrimônios da humanidade e conclui dizendo: “Enquanto o mundo não internacionalizar tudo, a Amazônia é nossa. E só nossa”. Foi Sebastião Salgado quem, dez anos depois, me disse que eu estava errado. Falou “Se não formos capazes de cuidar do que é nosso, não merecemos ser donos”. Sobretudo quando o bem pertence também a outros bilhões de seres humanos, de hoje e do futuro, como a Amazônia. Por isto agradeço ao Tião Salgado e ao Leonardo Boff, fazerem parte dos que defendem uma soberania decente, progressista, humanista. Leonardo Boff está à frente de seu tempo, defendendo a modernização do conceito de soberania para servir à humanidade, tanto quanto raros brasileiros fizeram, em 1845, colocando a abolição da escravidão como parte dos sonhos de um país soberano e decente.
Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador
Fonte: Blog do Noblat