As imagens de rios icônicos e lagos da Amazônia quase desaparecendo, de botos-cor-de-rosa mortos nas margens e de comunidades ribeirinhas angustiadas pelo desabastecimento soam mais um alerta sobre os riscos de colapso da maior floresta tropical do planeta. O quanto esse episódio está relacionado com o chamado ‘ponto de não retorno’ do bioma amazônico?
Já faz mais de 30 anos que cientistas brasileiros e estrangeiros alertam que o avanço do desmatamento e as mudanças climáticas afetariam a tal ponto a dinâmica da floresta que ela não conseguiria mais se regenerar e ‘morreria’. No lugar, uma vegetação empobrecida de tipo savana emergiria. A morte em massa de árvores gigantescas ainda geraria uma verdadeira bomba de emissões de carbono, o que agravaria o aquecimento do planeta.
A cientista Luciana Gatti, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, é uma das maiores especialistas do Brasil sobre o tema. Ela explica que a floresta tropical úmida opera ‘como um grande air bag climático’, um desacelerador da mudança do clima.
“É difícil. Mesmo a gente sabendo que chegaria numa situação de colapso como a gente está assistindo hoje, nunca estamos preparados o suficiente”, lamenta. “A gente vem alertando que isso que se chama de progresso, não é. Chamam de desenvolvimento econômico destruir a floresta e substituir por pastagens, plantações de milho e soja, extração de madeira, enquanto que isso causa um prejuízo para toda a coletividade, todos que vivem no Brasil e nesse planeta”, constata.
Desmatamento é o principal causador
O desmatamento acelerado tem levado menos vapor de água para a atmosfera – do lado oeste da Amazônia, o mais preservado, a perda de precipitações na estação seca, que ocorre agora, já chega a 20%. Para evitar o colapso, ressalta Luciana Gatti, a promessa de fim do desmatamento da Amazônia em 2023 não é mais suficiente.
“Uma vez que uma região chega no ponto de não retorno, ela vai contaminando as demais”, explica. “A gente precisa de uma ação urgente, decretar calamidade na Amazônia, principalmente na região sudeste, que é a mais próxima do ponto de não retorno, e a segunda é a nordeste. O lado leste emite oito vezes mais carbono, porque a floresta já está numa condição de extremo estresse.”
Nestas áreas mais suscetíveis, a devastação da região oscila entre 30 e 40%, e mais de 2 milhões de quilômetros quadrados do bioma estariam muito próximos do ponto de não retorno. O aumento das temperaturas só torna esse coquetel mais perigoso – e é por isso que o fenômeno El Niño desempenha um papel importante no que ocorre agora, aponta Ane Alencar, especialista do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) em degradação florestal.
“Normalmente ele causa uma seca mais severa na Amazônia. Entretanto, o que a gente tem visto é que esse El Niño é muito forte. O aquecimento das águas do Pacífico, na região do Equador, tem sido muito intenso”, afirma. “Isso causa efeitos sinérgicos com outros fenômenos, como o aquecimento das águas do Atlântico, que também impacta na seca na Amazônia. E o que tem acontecido é que as mudanças climáticas têm intensificado esse fenômeno e às vezes aumentado a sua frequência também”, salienta a geógrafa.
Efeito das queimadas
Os fenômenos El Niño costumam durar entre um e dois anos, o que leva os especialistas a esperarem por uma agravação ainda maior do estresse hídrico na Amazônia em 2024. Alencar ressalta que a floresta tem resiliência para suportar períodos de seca, mas essa capacidade acaba limitada quando o clima está desestabilizado e também pelas intervenções humanas – em especial as queimadas, que deixam a floresta inflamável em caso de estiagem.
“Quando a gente fala de ponto de não retorno, a gente fala de uma mortalidade tão intensa e de condições que não deixem as árvores retornarem. O fogo é um elemento muito transformador e, com certeza, na equação que pode levar a um ponto de não retorno, ele é um elemento fundamental: ele pode vir a inibir o retorno de um certo tipo de vegetação que não resiste ao às chamas”, aponta Alencar.
“As árvores da Amazônia não são como as do Cerrado, que tem a casca grossa, adaptada ao fogo. Os incêndios levam a uma alta mortalidade na Amazônia”, adverte.
No Amazonas, milhares de focos de queimadas na última semana deixaram Manaus sob uma espessa camada de fumaça, que chegou a paralisar o transporte fluvial do porto Bertolini. A Polícia Federal realiza operações para combater o fogo ilegal.
*Com informações do site RFI